28 de Maio, 2009
Vamos todos começar a beber muita água para ficar saudáveis, é a recomendação do Instituto Hidratação e Saúde
Autor: O Primitivo. Categoria: Saúde
Vídeo: World record in drinking water (Youtube).
A notícia de hoje no Público, intitulada "Maioria dos portugueses não ingere líquidos suficientes", deixou-me um pouco perplexo, e como sempre céptico face à validade de afirmações sensacionalistas como o título em questão. Eu não entendo nada de hidratação, nem de fisiologia, nem de saúde, nem de nada, mas ainda me sobra alguma capacidade crítica para intuir que, se uma maioria não ingere líquidos suficientes, é porque há algum "problema" nisso. Não porque goste de ser anti-democrático ao ponto de sugerir que as maiorias nem sempre estão correctas, mas pelo simples facto de que acredito que o corpo humano possui mecanismos de auto-regulação, certamente muito avançados e inteligentes, que não deveriam deixar, não havendo falta de água, que não ingeríssemos líquidos suficientes. Ou seja, por outras palavras, se efectivamente necessitássemos de estar a beber mais água, seria o nosso próprio organismo a puxar por nós e a intoxicar-nos com os tais 3,7 litros de água diários que estes especialistas recomendam. Estou a ser claro ou nem por isso?
Mas voltando à notícia, quem é que publica estas coisas? Fala-se de um estudo do Instituto Hidratação e Saúde, que por acaso até tem uma página bastante bem apresentada no endereço www.ihs.pt. Explicam eles que "O Instituto de Hidratação e Saúde é uma organização idónea, cientificamente independente, credenciada e legitimada para liderar uma campanha nacional em favor da hidratação". Estive a ver "na diagonal", e curiosamente não consegui encontrar nenhuma informação convincente, sobre ingestão recomendada de água, nas referências bibliográficas, que constam da secção informação técnica. Estive de facto a pesquisar na Pubmed por algumas dessas referências, também folheei um livro de fisiologia que tenho, e nada. Confesso que estaria à espera de citações de artigos de revisão sobre recomendações sobre ingestão de água, para determinados grupos populacionais e conforme graus de sedentarismo/actividade, mas apenas quase só lá estão artigos sobre as desvantagens de se estar desidratado.
Por sua vez, o estudo de que o Público fala intitula-se "Estudo de Caracterização do Perfil de Hidratação dos Portugueses", e que pode ser lido aqui, é um estudo meramente observacional, realizado no Inverno e por isso, nas palavras dos próprios autores, "os valores registados poderão estar subvalorizados". Ou seja, se calhar, no resto do ano, que inclui a época de verão, até bebemos mais água do que o que foi observado. E talvez se possa perguntar para que condições climáticas foram definidos os valores de referência. Não faço ideia. Basicamente, o estudo toma como referência as recomendações do "Dietary Reference Intakes for Water, Potassium, Sodium, Chloride, and Sulfate" (2004), do Institute of Medicine, o qual pode ser folheado on-line aqui. As recomendações deste outro instituto, no que respeita a água, estão resumidas na página 6 deste documento (nota: nesta mesma página há umas burrices sobre colesterol, gorduras saturadas e dietas hipoproteicas, mas vou fingir que nem vi nada).
Mas isto é a recomendação americana. E na Europa, que terá a agência EFSA a dizer? De acordo com os autores do estudo, "as recomendações, ainda em discussão pública, que a Comissão Europeia solicitou ao Panel on Dietetic Products, Nutrition and Allergies do EFSA, sobre os valores de referência para o consumo de água, sugerem valores de referência inferiores aos utilizados na população americana. Isto coloca os resultados encontrados mais próximos dos valores de referência em discussão na Europa. Isto é, apenas os homens com idade superior a 31 anos estarão abaixo do recomendado". Quer dizer, mas então ainda há pouco estávamos quase todos desidratados, e agora já só os homens de idade superior a 31 anos, grupo no qual eu me incluo, é que estão? (Agora até estou a sentir sede!) Este painel da EFSA concluiu, no seu relatório preliminar que pode ser lido aqui, na página 40, que "Adequate total water intakes for females would have to be 2.0 L (P 95 3.1 L) and for males 2.5 L (P95 4.0 L)". Ou seja, em média 2,5 l/dia para homens, com um percentil 95% de 4 litros. É um intervalo bastante alargado, mas é bastante menos que a média dos 3,7 litros dos americanos. Uma pergunta? Se somos europeus, porque razão não adoptar os valores de referência do nosso continente? É porque assim o título nos jornais já não resultava tão espectacular: "Apenas os homens com idade superior a 31 anos não ingere líquidos suficientes"? Eu nunca controlei o que bebo, mas deve andar pelos 1,6 litros da média do meu escalão, no inverno. Só bebo mais nos dias de treino/corrida, posso beber 1 litro a mais. Mas a minha dieta, apesar de ser a antítese da pirâmide alimentar saudável, até deve ter bastante água.
Mais adiante, ainda pelo website do IHS, na pergunta nr. 8 da FAQ, que é "Com que fundos foi este Instituto criado?", ficamos a saber que "O IHS foi desenvolvido com o esforço de várias empresas que se uniram em torno desta importante temática que afecta e diz respeito à população em geral. É um exemplo de cidadania promovido pela indústria que representa o sector das bebidas não alcoólicas." E também que empresas desta indústria assumem funções directivas, em colaboração com o Comité Científico. Portanto, um instituto financiado por empresas de bebidas não-alcóolicas, que fazem questão de promover a ideia de que deveríamos estar a beber muito mais do que o nosso corpo pede diariamente? Poderá haver algum interesse comercial aqui envolvido? Estou só a especular, não faço ideia, nem questiono ninguém. Em Portugal, de acordo com a minha pesquisa, parece que "a indústria de bebidas não alcoólicas é representada pela Assoc. Nacional dos Industriais de Refrigerantes e Sumos de Frutos". Ora, esta associação, a ANIRSF, inclui nos seus associados todo o tipo de empresas: cervejeiras, de refrigerantes, águas, de distribuição, etc. E de facto, no site do IHS, nas fontes de hidratação, no item bebidas com sabor, podemos ler que "existe à disposição no mercado português, uma variedade enorme de bebidas, que incluem nomeadamente bebidas de sumos de frutos, de polme, de extractos vegetais, aromatizadas, sumos 100%, néctares, chás e tisanas, bebidas isotónicas e bebidas lácteas". Agora entendo melhor aqueles comentários/bocas no artigo do Público, referindo a necessidade de começarmos a beber mais cerveja!
Para terminar, uma nota final. Tudo isto faz lembrar aquela recomendação do "beba 8 copos de água por dia", que na prática não é, provavelmente, mais que um mito urbano. A respeito de "hidratação primitiva", vale a pena ler este óptimo artigo de Mark Sisson, intitulado "Drink Less Water?", portanto totalmente contrário ao que os nossos modernos especialistas da hidratação estão a recomendar. Mas se calhar eles até podem estar certos, e nós o povo desinformado, completamente errados, apesar de sermos uma maioria. De igual forma, vale também a pena ler o artigo "Drink At Least 8 Glasses Of Water A Day" — Really?, do Science Daily, que descreve o estudo de Heinz Valtin, autor do artigo "Drink at least eight glasses of water a day." Really? Is there scientific evidence for "8 × 8"? (nota: "8 x 8" = 8 copos de 8 onças = 8 x 0,23 l = 1,84 litros), publicado no American Journal of Physiology em Nov/2002. O vídeo acima neste artigo é também uma referência científicia importante, pois demonstra que se pode beber 1,5 l de água em apenas 4 segundos. Ou seja, nunca pode ser desculpa, mesmo que sejamos pessoas muitíssimo ocupadas, não bebermos, por exemplo, 3 litros de água por dia, porque isso até se consegue fazer em 8 segundos!