04 de Abril, 2009
Ancel Keys, fundador da epidemiologia moderna e também dos mitos do colesterol e das gorduras saturadas
Foto: Dr. Ancel Keys (1904-2004), pioneiro na
epidemiologia das doenças cardiovasculares.
O Sr. Colesterol
O Dr. Ancel Benjamin Keys, também conhecido por Sr. Colesterol, foi um cientista americano extraordinário, nascido em 1904, em Colorado Springs, e que viveu mais de 100 anos. Considerado o fundador da moderna epidemiologia da doença cardiovascular, o seu percurso profissional confunde-se um pouco com a história da própria Cardiologia. Com um mestrado em Ciências Biológicas em 1929, um doutoramento em Oceanografia e Biologia em 1930, e outro doutoramento em Fisiologia em 1938, a sua carreira foi dedicada à epidemiologia das doenças cardiovasculares.
Terá sido dos primeiros cientistas a estudar objectiva e quantitativamente processos fisiológicos como o envelhecimento e as respostas ao calor, ao frio e à fome, tendo aplicado pela primeira vez conhecimentos matemáticos nesses estudos à biologia humana, para entender, por exemplo, as relações entre a altura e o peso, a dieta e os lípidos sanguíneos, ou entre estes e as doenças cardiovasculares.
Ancel Keys foi professor da Univ. do Minesota entre 1936 e 1972, onde fundou e coordenou o Laboratório de Higiene e Fisiologia. Apesar de Keys não ser médico, deixou um importante legado de várias realizações à medicina preventiva e à clínica da época, das quais a SPHM, no seu artigo sobre os pioneiros da epidemiologia, destaca:
- Estudo epidemiológico conhecido por Estudo dos 7 Países, realizado em sete países de três continentes. Com este projecto, iniciado em 1958 e que englobou cerca de 12.000 homens de meia idade residentes em Itália, Grécia, antiga Jugoslávia, Holanda, Finlândia, Japão e Estados Unidos, Keys pretendia demonstrar a repercussão nociva de dietas hiperlipídicas na saúde, em particular no desencadeamento do enfarte do miocárdio; Deve-se-lhe o primeiro estudo prospectivo da cardiopatia isquémica, realizado durante 10 anos, com exames clínicos e colheitas de amostras de sangue, em 283 homens de negócios norte-americanos, nos quais observou a associação da hipercolesterolemia, tabagismo e hipertensão arterial com uma elevada tendência para diversas formas de doença cardiovascular; O Estudos dos 7 Países verificou a existência de uma correlação entre a cardiopatia isquémica, a colesterolemia e o consumo individual de gorduras saturadas; Foi ainda evidenciado que dietas ricas em vegetais, fruta, massa, pão e azeite de oliveira, que caracterizavam a dieta do “tipo Mediterrânica”, e pobres em carne, ovos, manteigas e produtos lácteos, reduziam a ocorrência de cardiopatia coronária, ao contrário do sucedido com a dieta de “tipo Ocidental”;
- Fundação de um laboratório para o estudo da composição e funções do organismo humano, o Laboratory of Physiological Hygiene. No início e durante algum tempo o laboratório esteve instalado sob as bancadas de um sector do estádio desportivo da cidade (Memorial Stadium, Gate 27). Entre vários projectos, Ancel Keys deu particular atenção ao estudo da fisiologia do jejum e da nutrição, em que participaram voluntariamente objectores de consciência;
- Estudo e/ou concepção de duas dietas - as famosas “rações de combate K”, K em homenagem ao próprio Keys, desenvolvidas naquele laboratório, utilizadas por milhões de soldados durante a 2.ª Guerra Mundial e que também ganharam a preferência como jantar de uma parte da população norte-americana; e a “dieta Mediterrânica”, da qual Portugal partilha e que mantém reconhecida actualidade.
Vídeo: Food for fighters (1943).
Na década de 50, o interesse de Keys pela relação entre nutrição e doença cardiovascular precipitou-se quando se apercebeu de algo aparentemente pouco intuitivo, o facto de que os executivos americanos, presumivelmente as pessoas mais bem nutridas, apresentavam altas taxas de doença cardiovascular, enquanto que no período pós-guerra, no final da década de 40, em que a disponibilidade de comida se reduziu drasticamente, essas mesmas taxas eram muito menor. O Dr. Keys postulou então uma correlação entre colesterol sanguíneo e doença cardiovascular e iniciou o primeiro estudo cardiovascular do mundo, o Estudo dos 7 Países, no estado do Minnesota. Este estudo identificou, com base nos poucos dados então disponíveis, fortes associações entre doença cardiovascular e o colesterol total médio e o aporte de ácidos gordos saturados. No entanto, nas décadas futuras e até ao presente momento, à medida que se vão dispondo de mais dados, verificou-se que estas associações eram cada vez mais fracas ou até mesmo inversas, colocando em causa os nexos de causalidade até então assumidos.
Figura: Estudo dos 7 Países - correlação entre colesterol médio
e mortalidade cardiovascular num período de 10 anos.
Gorduras: más para o coração?
Keys aparentemente descobriu que nas sociedades onde as gorduras eram consumidas em maior quantidade, portanto com dietas hiperlipídicas, casos então da América e da Finlândia, onde, por exemplo, se costumava passar manteiga no queijo, os níveis de colesterol eram superiores e também as taxas de mortalidade cardiovascular. Em culturas com mais frutas e vegetais, pão e massas e muito azeite, como a Mediterrânica, os citados níveis de colesterol eram inferiores e verificava-se menor incidência de doenças do coração. Keys verificou que o povo em maior risco era o finlandês, com 992 ataques anuais em cada 10.000 hab, enquanto que o menos sujeito a este tipo de doenças era o povo de Creta, na Grécia, com apenas 9 ocorrências, portanto 110 vezes inferior.
No Estudo dos 7 Países, os dados de Keys também mostraram ainda existir uma proporcionalidade entre gorduras saturadas e mortalidade cardiovascular. Os finlandeses possuíam dietas com 20% de gorduras saturadas, enquanto os japoneses apenas de 2.5%. Os valores de países com aportes relativos intermédios caíam exactamente sobre uma mesma linha, conforme ilustrado no gráfico abaixo. Considerados em conjunto, os dados disponíveis pareciam apontar para maiores riscos para populações com maiores níveis de colesterol e maior ingestão de gorduras saturadas.
Figura: Estudo dos 7 Países - correlação entre % de gordura saturada e
mortalidade cardiovascular num período de 10 anos.
Na década de 60 Keys já tinha convencido a população americana de que substituindo as gorduras saturadas por outras, com menor grau de saturação, reduziria os seus níveis de colesterol e, com isso, a incidência de doenças cardiovasculares. As modificações alimentares que se sucederam nos EUA deram então origem, entre 1960 e 1975, a uma duplicação do consumo de ácidos gordos insaturados e de ácido linoleico. Os níveis de doença cardiovascular diminuíram nos EUA a partir de 1968 e pelo menos metade dessa queda foi então atribuída a mudanças de estilo de vida e na alimentação.
O Dr. Ancel Keys concluiu ainda que as gorduras saturadas do leite e da carne, por serem de tipo saturado, alegadamente teriam efeitos adversos, por oposição aos efeitos benéficos das gorduras poliinsaturadas dos óleos vegetais. Apesar destas ideias terem começado a ser aceites desde a década de 60, só passaram para a opinião pública a partir de 1985, ano até ao qual todas as gorduras alimentares eram consideradas nocivas à saúde, ideia esta promovida pela hipótese então prevalente, sem base científica, de que todos os lípidos seriam, por si sós, responsáveis pela obesidade e pelo cancro.
Foto: Publicidade que assenta
no mito do colesterol.
Posteriormente, a partir da década de 90, estas associações passaram a ser muito contestadas, devido à fraca associação entre gorduras e cancro, e também ao fracasso das dietas low-fat em conter a epidemia de obesidade. No entanto, o mito de que o colesterol deve ser reduzido para se evitarem as doenças cardíacas, apesar de serem os nutrientes hiperglicémicos os principais responsáveis pela doença cardiovascular, tenderá a ser perpetuado pelas indústrias farmacêutica e médica, que financia estudos como o Jupiter, pois nestes mitos assenta uma indústria mundial de biliões de euros, interessada unicamente em ganhar dinheiro à custa da venda de estatinas, as quais possuem efeitos secundários muito prejudiciais.
A hipótese lipídica na actualidade
Tal como explica o Dr. Ottoboni, no seu artigo The food guide pyramid: will the defects be corrected?, na época de Keys, nos anos 50, 60 e em diante, a generalidade da comunidade científica aceitou entusiasticamente a hipótese lipídica. As pessoas comuns foram encorajadas a abandonar a manteiga e outras gorduras animais, derivados do leite e ovos. As únicas gorduras aceites passaram a ser as de origem vegetal, ou seja, as margarinas e óleos de milho, girassol, etc. As carnes vermelhas foram declaradas nocivas por causa das suas gorduras que contêm colesterol, supostamente entupidoras de artérias. A hipótese lipídica persistiu assim até à década de 90, altura em que a USDA criou o conceito de pirâmide alimentar, consistindo em 50-60% de HC, 16-20% de proteínas e 30% de gorduras.
Apesar destas recomendações, em 1998 as doenças cardíacas nos EUA não tinham diminuído. Antes se tornaram a causa primária de morte nos EUA, cerca de 31% de todos os óbitos. A prova disto é o número crescente de papers científicos em jornais epidemiológicos, bioquímicos e nutricionais que confirmam relações de causa-efeito entre as recomendações da pirâmide alimentar e o incremento de inúmeras doenças da civilização. Numa graciosa mea culpa, alguns membros proeminentes da comunidade nutricional até reconhecem estes erros, afirmando que promovendo o consumo de HC complexos e afastando todas as gorduras e óleos, a pirâmide alimentar torna-se errónea, porque nem todas as gorduras são nocivas e nem todos os HC complexos são desejáveis.
O Dr. Ottoboni nesse seu artigo, cuja leitura se recomenda vivamente, explica que Ancel Keys não teria obtido os mesmos resultados caso tivesse utilizado dados dos 22 países então disponíveis. Para além deste aspecto, de natureza estatística, relacionada com a Lei dos Grandes Números, que estabelece a dimensão mínima de uma amostra, por forma a que esta se possa considerar representativa a um determinado nível de confiança, Keys é criticado por supostamente não ter tido em devida conta o bem conhecido facto de que, em epidemiologia, correlação não implica causalidade. Para que tais associações pudessem ser confirmadas seria necessário ter levado a cabo estudos controlados de intervenção.
A pressão da indústria das estatinas
Vídeo: Chris Masterjohn e Jerry Bruneti falam de colesterol.
O sucessores de Keys e que apoiaram as suas ideias também são acusados de se basearem em conceitos bioquímicos, fisiológicos e nutricionais erróneos ou ultrapassados, tais como o de se considerar animais herbívoros como os coelhos, muito mais sensíveis aos níveis de colesterol, em experiências. Nos humanos, o colesterol alimentar praticamente não afecta os níveis plasmáticos, porque o nosso fígado produz menos quando ele é fornecido na dieta, mas em coelhos pode incrementá-los até 3000%. Muitos dos estudos de Keys também enfermam do fraco conhecimento bioquímico da época, em que se desconheciam processos metabólicos importantes, como a vertente inflamatória da doença cardiovascular, se ignoraram variáveis críticas, como o consumo de hidratos de carbono e açúcares, o rácio entre ácidos gordos ómega-3 e ómega-6, etc.
Video: Animação alusiva ao mito do colesterol.
A hipótese lipídica do Dr. Ancel Keys encontra-se hoje numa encruzilhada, perdendo cada vez mais a sua validade em face dos novos estudos realizados, como o Women’s Health Initiative, cujos resultados da dieta low-fat não foram os esperados, bem como de mais dados estatísticos disponíveis. A este respeito, convém notar que muitos dados epidemiológicos se encontram agora livremente acessíveis e qualquer indivíduo pode analisar os dados. Por exemplo, se correlacionarmos as gorduras totais na dieta com a mortalidade cardiovascular, verificadas em 163 países em 2003, obteremos este gráfico. Ou se relacionarmos colesterol também com mortalidade cardiovascular, obtemos este outro gráfico.
Tudo isto representa obviamente um grande problema, um colossal problema à escala mundial, jamais para o prestígio do trabalho pioneiro do Dr. Ancel Keys, mas antes para estas gerações mais recentes de especialistas e de investigadores que, em face de toda a ciência e dados actualmente disponíveis, ainda se mantêm presos a esta hipótese e aos financiamentos a elas associados, atribuídos naturalmente pela já atrás citada indústria das estatinas.
Considerações finais
O Dr. Keys era apologista do que ele próprio designava por "dieta razoável", acompanhada de "actividade física segura e com utilidade", e a sua vida pessoal foi um bom exemplo disso mesmo. Por exemplo, em Nápoles, onde passou muitos dos seus últimos anos de vida, para além da sua reforma profissional, continuava muito activo, trabalhando no jardim da sua casa e também viajando por todo o mundo para conferências.
A epidemiologia moderna deve hoje, e para sempre, uma homenagem a este brilhante investigador, o Dr. Ancel Keys, pela sua notável contribuição para a ciência e para os seus métodos, os quais ajudou a desenvolver e que incluem a observação epidemiológica, a formulação de hipóteses, a identificação de factores de risco, a realização de testes controlados, de ensaios laboratoriais, o uso da estatística, etc.
Foto: Prof. Ancel Keys aos 93 anos de idade, trabalhando.
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The role of cholesterol and diet in heart disease, Dr. Fred Ottoboni
The food guide pyramid: will the defects be corrected?, Dr. Fred Ottoboni
Low-Fat Diet and Chronic Disease Prevention: the Women’s Health Initiative and Its Reception, Dr. Fred Ottoboni
Ligações relacionadas:
Seven Countries Study - On the trail of heart attacks, Univ. do Minesota, EUA
Seven Countries Study: coordination and main results, Dr. Henry Blackburn
Ancel Keys, Wikipedia
Cholesterol - You Can’t Live Without It! (Chris Masterjohn)
The great cholesterol con (Anthony Colpo)
International Network of Cholesterol Skeptics, THINCS
The cholesterol myths (Uffe Ravnskov)