Canibais e Reis

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26 de Abril, 2011

“Consumo de maçãs pode aumentar esperança de vida?” e outras conjecturações épicas sem suporte da evidência existente

Autor: O Primitivo. Categoria: Civilização| Dieta| Mitos| Saúde

Vídeo: Consumo de maçãs pode aumentar esperança de vida.

10 Cuidados alimentares para prevenção do cancro

(…)

Aumente o consumo de hortícolas e fruta

"O seu consumo está relacionado com um menor risco de desenvolvimento de cancro do pulmão, da boca, do esófago, do estômago e cólon, pela sua riqueza em vitaminas, minerais, fibras, antioxidantes e fitoquímicos. Frutos e hortícolas brancos (banana, melão, alho, cebola) são cada vez mais associados à redução do risco de cancro. Os de cor roxa (amora, beringela) e vermelha (morango, tomate), estão directamente relacionados com a diminuição de cancro do tracto urinário. A Organização Mundial de Saúde recomenda um consumo de pelo menos 400 g de hortofrutícolas por dia."

 

Fonte: APN-Assoc. Portuguesa dos Nutricionistas.

Vegetais/frutas protegem contra cancro?

Estas notícias extaordinárias, "consumo de maçãs pode aumentar esperança de vida", será que alguém acredita nelas mesmo? Constituem informação científica e fidedigna ou será que, pelo contrário, são mais fantasia que qualquer outra coisa? Uma coisa é certa, se você mantiver o seu estilo de vida inalterado, e apenas substituir o que come de manhã por um par de maçãs, certamente isso não vai alterar grande coisa do seu futuro. É uma grande desilusão para todos, em especial para os nutricionistas, mas a teoria das 3-5 porções diárias de vegetais/fruta, promovida insistentemente nas últimas décadas, afinal, em matéria de prevenção do cancro, é cada vez mais um mito em erosão. Eu já tinha falado disto no artigo evidências convincentes de que consumo de bróculos protege contra cancro. E, de facto, no mais importante estudo de nutrição vs cancro alguma vez realizado na Europa, e aparentemente o maior do mundo, o EPIC-European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition, estas incertezas só se adensam ainda mais. Isto porque as associações entre consumo de vegetais/fruta e cancro em geral são praticamente nulas, uma completa desilusão. Vejam-se, por exemplo, estes dois estudos resultantes dos trabalhos de investigação do EPIC:

Boffetta P, Couto E, Wichmann J, et al. Fruit and vegetable intake and overall cancer risk in the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC). J Natl Cancer Inst. 2010 Apr 21;102(8):529-37. Epub 2010 Apr 6.

van Duijnhoven FJ, Bueno-De-Mesquita HB, Ferrari P, et al. Fruit, vegetables, and colorectal cancer risk: the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition. Am J Clin Nutr. 2009 May;89(5):1441-52.

No primeiro estudo, as razões de riscos para vegetais ou fruta, tomados isoladamente, vs risco de qualquer cancro são praticamente unitárias, na melhor das hipóteses atingindo o valor HR=0.89 quando se combinam ambos os alimentos (pág. 533, tabela 2), algo que evidencia a praticamente nula associação entre ambas as variáveis e risco de cancro em geral. Estamos aqui a falar de riscos relativos, nem sequer estão estes traduzidos em riscos absolutos ou sequer em NNT, que são ainda menores. A epidemiologia em face dos seus limites? Certamente que os diversos tipos de cancros não têm a mesma génese, mas no saldo geral frutas/vegetais, ao contrário do que os especialistas dizem, parecem não acrescentarem grande coisa à prevenção. Pode existir causalidade sem associação, quer dizer, frutas/vegetais poderão ter um efeito protector no cancro quando os estudos mais importantes e de maior escala, tal como o imensíssimo EPIC, mostram que não existe tal associação, ou que ela é na realidade nula? Pode seguramente, mas tal é muito improvável dadas as características do EPIC. E repare que os riscos relativos apresentados se reportam à diferença entre o menor e o maior quintil de consumos, por isso representam a vantagem máxima que pode resultar de consumir um máximo razoável de frutas/vegetais. Uma suposta vantagem máxima que não é nada épica, há que reconhece-lo. Nem vegetais, nem frutas, nem vegetais e fruta, nem fruta e vegetais, acrescentam muito na protecção contra o cancro em geral (pág. 533, tabela 2). E isto acontece independentemente de se ser homem, mulher e do país Europeu em que se vive (pág. 534, tabela 3). Por outras palavras, alguém evitará o cancro se passar a comer as tais maçãs da longevidade ou os bróculos anti-cancro? Seguramente que não, é uma mera ilusão. Mas se, ao invés disto, adoptar o estilo de vida das pessoas que comem mais maçãs e bróculos? Será que estas pessoas não adoptam também outras medidas, tais como uma vida mais "natural", preferem alimentos frescos, praticam mais exercício, andam mais a pé, etc.? Seguramente que sim, porque o que interessa, e realmente faz a diferença, é o estilo de vida. Medidas isoladas nunca funcionaram, e por isso são completamente infundadas estas notícias do tipo maçãs dão mais longevidade. Nenhum estudo jamais demonstrará algo como isto. Ainda por cima, a notícia em questão resulta de estudos num modelo animal, e está-se aqui a transpor para humanos, como se isso fosse possível. Tal nunca funcionou, nem jamais funcionará.

Mitka M. Study further erodes evidence for eating fruits and vegetables to prevent cancer. JAMA. 2010 Jun 2;303(21):2127-8.

Repare-se, no entanto, que esta crença do coma mais frutas/vegetais está tão profundamente enraizada que, em face da evidência dos estudos mais recentes e poderosos como o EPIC, os próprios investigadores entraram em negação e tentaram buscar razões e desculpas para concluir o contrário. Por exemplo, no segundo estudo citado, relativo ao cancro colorectal (CRC), na Tabela 3 da pág. 7, encontrou-se uma associação negativa entre frutas/vegetais e risco de CRC apenas para ex-fumadores, mas uma associação positiva para fumadores, embora esta última sem significância estatística. Isto é extraordinário, em fumadores, os que provavelmente mais beneficiariam de mais frutas e vegetais, estes alimentos aparentemente são desfavoráveis. E quando se analisam separadamente os cancros do cólon e do recto, as coisas ficam ainda mais confusas. No caso do cólon o eventual efeito protector é mais evidente. Mas no caso do cancro do recto, que é muito mais raro, a associação entre vegetais/fruta já se revela positiva, com HR entre 1.74 e 1.78 para os quintis 3 a 5, justamente os de maior consumo. Ou seja, nem sequer se vislumbra um eventual efeito de dose-resposta, essencial para se extrair causalidade, e pior ainda, esta associação positiva agora tem significância estatística, não se deu por acaso. O grupo de fumadores que consumiu mais vegetais/fruta teve maior risco de cancro do cólon. Este resultado faz sentido? O modelo multivariado em questão foi também ajustado para as fibras dos cereais, e caso fosse ajustado para fibras totais, ao invés da fibra dos cereais, dizem os investigadores na pág. 7, a associação entre vegetais/fruta e risco de CRC passaria a nula. Portanto, ficamos a saber que apenas as fibras dos cereais protegem contra o cancro, algo de que já tínhamos a certeza absoluta. Em suma, maior consumo de vegetais/frutas, na sua globalidade, fraco efeito produzem nos riscos de todos os cancros agrupados, e igualmente no caso do CRC. Na melhor das hipóteses, poderá ser favorável em alguns subtipos, ou quem sabe desfavorável em outros tipos. No cômputo global, o contributo vegetal em questão ronda a nulidade. Todas estas incongruências epidemiológicas só deveriam fazer supor que estão aqui presentes factores de confusão inultrapassáveis, não é?

O que estará então de "errado" nestas observações, donde deriva o equívoco de se pensar que mais frutas/vegetais possivelmente são protectores contra o cancro em geral, quando a realidade é que não se encontra associação estatística entre uma coisa e outra nos estudos mais importantes, como o EPIC? A questão está obviamente nos problemas dos estudos epidemiológicos, que somente permitem extrair associações, mas jamais causalidade. A causalidade só poderia ser suposta a menos que os riscos relativos encontrados fossem realmente épicos, acima de 5.0 ou algo parecido. Quando todos eles andam em torno de 1.0 (ausência de associação), o mais provável é que essa associação seja inexistente ou esteja confundida por outros factores. Os estudos epidemiológicos não permitem extrair causalidade, apenas dão pistas sobre algo, que depois terá de ser testado em estudos de intervenção. E é aqui que todas as recomendações de saúde falham rotundamente, porque se baseiam em estudos observacionais, focalizando-se estritamente em nutrientes isolados, ou em alimentos avulsos, para concluir que uns e outros, em face de fracas associações estatísticas confundidas por inúmeros factores incontroláveis/desconhecidos, que existe causalidade entre uma coisa e outra. As recomendações oficiais baseiam-se, por isto, mais em crenças que propriamente em ciência. E acredite que os estudos epidemiológicos confirmam sempre as velhas crenças, por causa do chamado efeito de coorte saudável. Quando uma mensagem é publicitada anos a fio, dizendo que vegetais/frutas protegem do cancro, as pessoas mais preocupadas com a saúde de facto consumirão mais destes alimentos, mas não farão apenas isso. Adoptarão outras medida de estilo de vida efectivamente saudáveis, que ninguém sabe ao certo quais são. E os estudos observacionais subsequentes seguramente detectarão estas novas associações. Apesar disto, frutas/vegetais, um alimento convencionado saudável, cada vez mais evidenciam possuir fraquíssimo, ou mesmo nulo, efeito na protecção contra o cancro em geral. Devemos deixar de comer vegetais/fruta só por causa disto? Obviamente que não, mas também convém ter presente os eventuais efeitos prejudiciais do mito das 5 porções de vegetais/fruta.

 

Ideias épicas, ou nem por isso?

Para complicar ainda mais, ainda que existisse uma hipotética associação negativa entre vegetais/fruta e risco de cancro em geral, que como vimos acima é somente vestigiária, será que intervir, emanando recomendações para as populações de se consumir mais vegetais/fruta produziria alguma resultado na protecção contra o cancro? A resposta é obviamente não. Vamos exemplificar isto não com os vegetais/fruta saudáveis, mas com o macro-nutriente amaldiçoado do nutricionismo low-fat, as gorduras de qualquer tipo. É um facto sabido, há vários anos, que existe uma associação evidente entre consumo de gorduras totais e cancro da mama. Para ter uma noção do que esta associação em bruto (sem ajustes para factores de confusão) representa, veja só o impressionante gráfico abaixo, extraído deste artigo do EPIC. Note-se que esta associação cancro da mama vs gorduras, a par da teoria da densidade energética, tem sido o pretexto nas últimas décadas para justificar as pouco épicas dietas low-fat do nutricionismo. Que nunca funcionaram, e a prova mais estrondosa disso surgiu com o Woman’s Health Inititative Study (WHI), o maior estudo de sempre com intervenção low-fat e especificamente focalizado no cancro da mama. Como é por demais sabido, os resultados do WHI foram total e completamente nulos, a todos os níveis e mais alguns. Inclusivamente, a dieta pobre em gorduras, rica em cereais integrais, vegetais/fruta e fibras protectoras contra todas as doenças da civilização, portanto a dieta mediterrânica low-fat da roda dos alimentos, até conseguiu agravar a condição de saúde das mulheres com doença cardiovascular.

 

Tudo isto pode parecer confuso, ou até um bocado surreal, para a maioria das pessoas, mas o simples facto de de se observar uma associação entre duas quaisquer variáveis epidemiológicas, por mais sugestiva que ela possa parecer, a mesma pode não passar disso mesmo, de uma mera associação estatística que na realidade está confundida por outros factores, os designados factores de confusão, algum ou alguns deles efectivamente causais. Por mais que custe aos especialistas anti-gorduras de serviço, é exactamente isto que se passa na (inexistente) associação entre gorduras e cancro da mama. Quando se ajusta estatisticamente o consumo de gorduras totais para os reais factores de confusão/causais do cancro, como o consumo de tabaco, consumo de álcool, status educacional, peso corporal, energia total, etc., a espantosa associação com o consumo de gorduras do gráfico acima simplesmente desaparece, evapora-se. A este respeito, repare só nos resultados do próprio EPIC no que respeita a gorduras totais e cancro da mama, que constam do seguinte artigo (ver pág. 1308 ,Tabela 2):

Smith-Warner SA, Spiegelman D, Adami HO, et al. Types of dietary fat and breast cancer: a pooled analysis of cohort studies. Int J Cancer. 2001 Jun 1;92(5):767-74.

Schulz M, Hoffmann K, Weikert C, et al. Identification of a dietary pattern characterized by high-fat food choices associated with increased risk of breast cancer: the European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition (EPIC)-Potsdam Study. Br J Nutr. 2008 Nov;100(5):942-6.

Thiébaut AC, Clavel-Chapelon F. [Fat consumption and breast cancer: preliminary results from the E3N-Epic cohort]. Bull Cancer. 2001 Oct;88(10):954-8. French.

Nesta análise do consumo de gorduras vs cancro da mama, o mito do consumo de gorduras causador de cancro da mama fica completamente desfeito, porque todos os riscos relativos, em todos os 5 quintis de consumo, aplicando-se os mais sofisticados métodos bioestatísticos existentes, resultaram absolutamente unitários (ausência de associação). Não admira por isso que a intervenção low-fat do WHI, portanto pobre em gorduras "causadoras" de cancro, tenha resultado no mais completo logro no que respeita à prevenção do cancro da mama. Provavelmente até só agravou ainda mais, pois o evitamento das gorduras passou o foco para alimentos modernos mais desfavoráveis, promotores de hiperinsulinémia. Gorduras totais não têm absolutamente nada a haver com cancro da mama, e possivelmente com mais nenhum outro tipo de cancro, principalmente se essas gorduras forem das tradicionais, como o azeite ou o óleo de coco. Mas se forem principalmente à base de óleos poliinsaturados, os tais óleos vegetais de milho, soja e girassol que supostamente "mais protegem o coração", sem sequer olhar para a literatura, eu quase que apostaria que serão adjuvantes de vários tipos de cancro. Neste estudo do EPIC os investigadores também analisaram as associações de sub-tipos de gordura com risco de cancro (ver pág. 1309, tabela 3), as quais resultaram igualmente em riscos relativos, do menor para o maior quintil, com ou sem terapia de reposição hormonal, sempre unitários (ausência de associação), com os intervalos de confiança a cruzarem sempre e sistematicamente o 1.0. O que não deixa de ser extraordinário e surpreendente, gorduras totais, sejam elas saturadas, monoinsaturadas ou poliinsaturadas, nos povos Europeus, não possuem qualquer associação estatística digna de registo com cancro da mama. Ou se tiverem essa associação é tão vestigiária, porque existem tantos outros factores infinitamente mais relevantes, que não vale sequer a pena alguém se preocupar em limitar gorduras para evitar o cancro. A dieta rica em frutas e vegetais e em fibras, e pobre em gorduras, nunca funcionou na prevenção do cancro da mama, o que é evidenciado pelos seguintes estudos de referência:

Prentice RL, Caan B, Chlebowski RT, et al. Low-fat dietary pattern and risk of invasive breast cancer: the Women’s Health Initiative Randomized Controlled Dietary Modification Trial. JAMA. 2006 Feb 8;295(6):629-42.

Rohan TE, Negassa A, Caan B, et al.Low-fat dietary pattern and risk of benign proliferative breast disease: a randomized, controlled dietary modification trial. Cancer Prev Res (Phila). 2008 Sep;1(4):275-84. Epub 2008 Jul 9.

Pierce JP, Natarajan L, Caan BJ, et al. Influence of a diet very high in vegetables, fruit, and fiber and low in fat on prognosis following treatment for breast cancer: the Women’s Healthy Eating and Living (WHEL) randomized trial. JAMA. 2007 Jul 18;298(3):289-98.

Mas será que os investigadores do EPIC retiraram esta conclusão dos resultados do seu estudo? Naturalmente que não, a fraquíssima e vestigiária associação positiva entre gorduras saturadas (do leite saudável que faz elevar o factor de crescimento IGF-1?) e cancro da mama, sempre o efeito de coorte saudável a marcar presença, constituiu uma bóia de "salvação" para se dissertar sobre os malefícios infindáveis dos alimentos tradicionais com mais gorduras saturadas. Mais um pretexto a ser utilizado na guerra equivocada contra as gorduras saturadas, retirando o enfoque dos reais problemas na luta contra o cancro, como por exemplo o tabagismo e o alcoolismo. A este respeito, citam o famoso WHI dizendo que se nele encontrou uma redução de risco (relativo, porque o absoluto é ainda mais diminuto) de cancro da mama com a redução de gorduras, da ordem de 9% mas sem significância estatística. Isto sem dúvida é verdade, e também é uma ficção científica porque a ausência de significância estatística significa que a fraca redução em causa se poderá ter dado por mero acaso estatístico. Mais uma vez, estamos aqui nos terrenos pantanosos dos fracos riscos relativos. A partir daqui, no capítulo de discussão dos resultados, os investigadores do EPIC elaboram as mais diversas conjecturas da razão do seu próprio estudo ter produzido resultados nulos no que respeita ao suposto efeito maléfico das gorduras, principalmente as saturadas, no cancro da mama. Convém notar bem que a "brutal" associação encontrada entre gorduras saturadas e cancro da mama se traduz num risco relativo de apenas 1.13, do menor para o maior quintil (ver. pág. 1309, tabela 3). No coorte francês do EPIC, envolvendo 65.879 mulheres, não se encontrou qualquer associação. Nada provado, e sem dúvida que a conclusão final é bastante sensata e em concordância com os resultados: "Concluindo, os dados do presente estudo acrescem à evidência que se acumula de uma fraca associação positiva entre consumo gorduras saturadas e risco de cancro da mama. Esta associação é mais pronunciada em mulheres pós-menoáusicas que nunca usaram terapia de reposição hormonal. Parece ser necessário um numeroso coorte, caracterizado por ampla variação no consumo de gorduras, para mostrar este fraco efeito, que pode ter limitada significância do ponto de vista da saúde pública". Vale a pena acrescentar mais alguma coisa?

 

Epidemiologia, uma caixinha de surpresas

É por estas razões todas, e mais algumas, que em epidemiologia se costuma dizer que "associação não implica causalidade". Infelizmente parece que as autoridades oficiais ainda não entenderam isto, porque focalizam-se estritamente em estudos epidemiológicos para deles extrair causalidade, e de forma selectiva, note-se bem, sempre por  forma a "revalidarem" as velhas crenças. O problema começa quando os estudos modernos, cada vez estatisticamente mais poderosos, só confirmam que, afinal, essas velhas crenças eram apenas isso, crenças sem fundamento. O mito dos vegetais/fruta protectores contra o cancro em geral, que todos os dias ouvimos insistentemente, encaixa neste contexto como uma luva. Esta abordagem nunca funcionou nem jamais dará resultados em saúde pública, pois ignora sempre algo de muito mais poderoso, e que está acima de tudo isto. O tal paradigma evolucionário, que deveria ser a base em todas as recomendações de saúde. Infelizmente, ele é sempre ignorado, bem como são esquecidos certos mecanismos metabólicos essenciais no cancro, e os resultados estão à vista. Décadas de recomendações oficiais equivocadas, desvalorizando os alimentos ancestrais/tradicionais, promovendo alimentos neolíticos e amaldiçoando injustificadamente as gorduras dietéticas, com resultados nulos ou mesmo nocivos para a saúde geral das populações. Será que tem algum efeito consumir mais frutas/vegetais, ricos em fibras e flavonóides, ignorando os aspectos pró-inflamatórios, hiperinsulinémicos e auto-imunitários da dieta moderna?

Para concluir, uma última nota em relação ao EPIC-European Prospective Investigation into Cancer and Nutrition. Trata-se de um estudo verdadeiramente épico, pela sua enorme dimensão e características em geral. O EPIC é um estudo europeu vastíssimo, em curso há décadas e para durar ainda mais 10 anos. A meu ver, os seus resultados serão dos mais fiáveis, não só porque tem por base um coorte vastíssimo de 1/2 milhão de europeus, mas também porque beneficia de uma abordagem estatística unificada, sujeita aos mais elevados padrões que a moderna bioestatística permite. Nada que as tais velhas crenças não possam deitar por terra facilmente, mas de qualquer forma são provavelmente os melhores dados/resultados de que dispomos em matéria de alimentação e seu impacto na saúde pública. Num artigo anterior já fiz uma selecção de alguns artigos deste EPIC, focalizando a questão nas carnes vermelhas, vegetarianos e risco de CRC, os quais analisarei a seguir. As conclusões que destes estudos se podem retirar são também surpreendentes, pelo menos para quem está preso aos velhos mitos. A título de exemplo, veja-se o caso dos vegetarianos britânicos do EPIC-Oxford, que apresentam maior risco de CRC que os britânicos carnívoros. Algo certamente inesperado e inexplicável, dada a certeza moderna de que as carnes vermelhas são "causadoras" de CRC. Mas tranquilizem-se os vegetarianos porque, em oposição a isto, também existe um estudo posterior (Key, 2009), congregando os resultados do Cancer incidence in vegetarians EPIC-Oxford (Key, 2009) com outro estudo vegetariano mais antigo, o Oxford Vegetarian Study (Sanjoaquin, 2004), demonstrando(?) que, afinal, vegetarianos e carnívoros têm o mesmo risco de CRC. O  que será razão para perguntar se, afinal, o evitamento de carnes vermelhas produz algum efeito no risco de CRC. Já agora, tranquilizem-se também os carnívoros, porque aparentemente a mortalidade total de carnívoros e vegetarianos é absolutamente idêntica. Ou seja, ninguém vive nem mais um dia por ser carnívoro ou vegetariano. Para terminar, fica uma curiosidade, o Dr. Timothy Key, que é nem mais nem menos o investigador principal do EPIC-Oxford, e também autor de dois dos artigos vegetarianos atrás citados, é membro da Vegetarian Society, UK. Uiiii, um vegetariano em trabalhos épicos de saúde pública, onde é que já vimos um filme igual a este? O mundo da epidemiologia nutricional é uma caixinha de surpresas, não é?

 

Dos Santos Silva. Cancer Epidemiology: Principles and Methods. IARC/WHO (1999)

Download: CancerEpi.pdf (30 Mb)

 




Tags: , cólon, colorectal, EPIC, , europeus, frutas, , , , rectal, vegetais

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